Projeto Imersão Literária convida a um mergulho na "Vida que ninguém vê" Eliane Brum

"O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva." Eliane Brum

Resenha: A  VIDA QUE NINGUÉM VÊ

No livro A Vida que Ninguém vê, a documentarista, jornalista e escritora Eliane Brum apresenta uma seleção de crônicas sobre pessoas anônimas que têm histórias fantásticas, como a história de Eva.

EVA CONTRA AS ALMAS DEFORMADAS

    Esta é a história de uma mulher que cometeu um crime que a humanidade não perdoa. Recusou-se a ser vítima. Eva Rodrigues preenchia todos os requisitos para a sentença. Era mulher: coitada. Era negra: coitada. Era pobre: coitada. Ainda não era tudo. Eva nasceu de um parto sofrido. Teve paralisia cerebral. O corpo todo tremia, ela derrubava a comida, caminhava mal, era toda ela um desajeito. À Eva, o mundo reservava apenas um destino: o de ser coitada. Eva poderia estender a mão e pedir esmolas. E receberia olhares de profunda pena. Em troca da moeda, devolveria ao doador o alívio não apenas da caridade, mas o outro, secreto: a garantia de que a deformidade, assim como a loucura, está sempre no outro.

    Eva rebelou-se. Decidiu que não seria coitada. Que o mundo se virasse com isso. Que o mundo achasse outras vítimas para preencher seu horror. Este foi o crime de Eva. Pelo qual jamais a perdoaram. Como não puderam lhe imprimir na testa o rótulo de coitada, a marcaram com outro. Como ela, a deformada, como ela, a deficiente, como ela, a defeituosa, ousava renegar a mão da caridade, irmã da pena, prima da hipocrisia? Como ousava ela, a anormal, encarar de igual para igual os normais? Parecia até que a exibição do corpo torto de Eva revelava a alma torta do outro. Parecia até que a falha exposta de Eva devassava a falha oculta do outro. Como ousava Eva, justo Eva, ser imperfeita em um mundo onde se paga fortunas para que todos sejam igualmente perfeitos? Como ousava Eva ser diferente em um mundo onde a igualdade das ideias é a única garantia de segurança? Como ousava Eva vencer pelo espírito no mundo da aparência?

    Ah, quanta pretensão a de Eva. Quanto perigo ofereceu Eva quando decidiu que não seria coitada. De vítima, Eva virou culpada. É preciso contar como Eva insurgiu-se. Antes de revelar como a castigaram. Eva não sabe se foi nos risos que a perseguiam, nas imitações que dela faziam, se foi no anúncio de que seu destino era ficar amontoada num canto. De preferência em silêncio. Só sabe que decidiu que não se submeteria. Que reinventaria seu destino. Reinventaria a si mesma.

    O primeiro ato de rebeldia foi entrar na escola. Conseguiu aos nove anos, no lugar onde nasceu, em Restinga Seca, na região central do Rio Grande. Suas mãos não obedeciam, eram dois membros convulsos que Eva não dominava. Eva usou toda a força de que dispunha para que a mão esquerda segurasse a direita. Uma mão retorcida sobre a outra, dores horrendas pelo esforço, Eva escreveu pela primeira vez. O atrito da mão dobrada sobre o papel deixou os dedos em carne viva. Os primeiros cadernos tinham letras ensanguentadas, palavras feridas. Os primeiros cadernos de Eva foram escritos a sangue.

    Eva descobriu nesse momento que era capaz de reescrever seu destino. E, logo à primeira ousadia, já recebeu o primeiro castigo. Mesmo com as melhores notas, foi obrigada a repetir o ano. A professora não aceitava, não compreendia que Eva conseguisse escrever. Eva repetiu e prometeu que repetiria quantas vezes fosse necessário até que a professora, o mundo, entendesse que jamais desistiria. Que os venceria, nem que fosse pelo cansaço. Que pedissem tudo a ela, menos o impossível. Que pedissem tudo a ela, menos que ficasse no seu lugar.

    Logo Eva aprendeu que a independência é areia movediça. Território a ser tomado e retomado dia após dia. Aos 17 anos, diante dos oito irmãos, dos pais analfabetos, agricultores sem terra, deu o primeiro grito:

    - Chega! Eu não sou coitada disso, coitada daquilo. Se eu derramar comida para comer, deixem que eu derrame. Se eu derrubar as coisas quando eu pegar, deixem que eu derrube. Se eu cair, deixem que eu me levante.

    Eva mudou-se para Porto Alegre. Empregou-se como doméstica e terminou o ensino médio. Suas mãos, assim como sua alma, eram escalavradas por cicatrizes. Mas já não sangravam.

    Eva ingressou na universidade, mas não podia pagar. Por duas vezes lhe negaram o crédito educativo. Pediu transferência para uma mais barata. Eva sonhava em ser educadora. Queria ensinar como se podia escrever com as mãos em chagas. E fazer das mãos retorcidas asas. Mas muitas eram as almas disformes que se colocariam entre Eva e o mundo. A luta estava recém no começo e provavelmente não terá fim.

    Ela ouviu e ouviu. Como vai escrever no quadro-negro tremendo desse jeito? Como vai ensinar com uma letra tão feia? Não vê que só vai incomodar? Não entende que entre você e uma menina normal vão escolher a normal? O que você quer? Vai passar a vida olhando para um diploma na parede? Eva ouviu tudo isso de uma educadora. Eva ouviu tudo isso na faculdade. Apenas para comprovar que a ignorância está onde menos se espera. Eva, a deficiente física, respondeu à deficiente de alma:

    - Em primeiro lugar, eu não vou desistir. Em segundo, a vida é um risco. Não só para mim. Mas para todo mundo.

    Eva demorou a descobrir por que sua tremedeira ameaçava tanto aqueles seres impávidos. Qual era a ofensa de sua fragilidade. Foi vilipendiada de todas as formas conhecidas e outras inventadas só para ela. Primeiro, impediram que fizesse estágio. Depois, só poderia fazê-lo numa escola de deficientes. Em seguida, decidiram que tinha de ser durante o dia porque sabiam que nesse horário ela trabalhava para pagar as contas. Por fim, como Eva não desistisse, desistiram eles de a impedir.

    Quando o nome de Eva foi pronunciado na formatura, todos levantaram, gritaram, aplaudiram. Eva não ouviu. Todos os seus sentidos estavam concentrados em não cair. Atravessar aquele palco sem tropeçar era a metáfora de sua vida. Eva não cairia. Não ali. E Eva não caiu.

    Finalmente conseguiu ocupar as salas de aula como educadora. Foram pelo menos três escolas. E em cada uma algo se passou. Quando descobriam que Eva não era coitada, que empregá-la não era um ato de caridade, tudo mudava. Quando descobriam que Eva era capaz, que era preciso competir com a sua mente, não com seus tremores, tudo se alterava. A comiseração do início transmutava-se em ódio. Quem essa aleijada pensa que é? Foi o que Eva ouviu e escutou. E assim Eva foi expulsa do mundo que mal havia tocado.

    Eva não desistiu. Como não desistirá. Prestou concurso em 1994 para servente no extinto Tribunal de Alçada. Pensou que os olhos vendados da Justiça não a julgariam por sua deformidade. Fez concurso em sala especial, como deficiente. Foi aprovada em nono lugar. A nomeação chegou a ser publicada. Mas vejam só, Eva foi reprovada pelo neurologista. Porque tremia as mãos, porque derramaria os cafezinhos.

    Uma assinatura encenou o capítulo de uma vida. Eva ingressou na Justiça. A defensora pública não compareceu ao julgamento alegando não ter sido avisada. Eva continuou. O processo está hoje no Supremo Tribunal Federal. Eva voltou a trabalhar como doméstica.

    Eva é mulher, negra e pobre. Eva treme as mãos. Tudo isso até aceitam. O que não lhe perdoam é ter se recusado a ser coitada. O que não perdoam a Eva é, sendo mulher, negra, pobre e deficiente física, ter completado a universidade. E neste país. Todas as fichas eram contra ela e, ainda assim, Eva ousou vencer a aposta. Por isso a condenaram. Atenção para as palavras de Eva:

    - A cada vez que me derrubarem eu vou levantar com mais força. Não quero saber de derrota. Derrota nunca esteve nos meus planos. E coitado é quem me chama.

    A vida é pródiga em paradoxos. O de Eva é que a odeiam porque não podem sentir pena dela. E o do mundo é que as piores deformações são as invisíveis.

BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006


 Disponível em nossa sala de leitura

    A produção em questão retrata muito do que podemos ver na maioria dos outros trabalhos de Eliane: um olhar para o outro que só ela é capaz de ter, uma preocupação e uma dedicação tamanhas que nos fazem ter certeza de que quando o assunto é empatia, Eliane é, sem dúvida alguma, uma mestra no assunto.

    A  vida que ninguém vê nos apresenta personagens ótimos e que nos ensinam a prestar ainda mais atenção naqueles que estão ao nosso redor e que, possivelmente, passam despercebidos pelos olhos mais apressados do dia a dia.

    Eliane Brum, Gaúcha de Ijuí, nascida em 1966,  é jornalista, escritora e documentarista. Iniciou no jornalismo em 1988 e tornou-se uma das repórteres mais premiadas do Brasil. Publicou seis livros – cinco de não ficção e um romance. Pela Arquipélago Editorial, lançou A vida que ninguém vê (2006, Prêmio Jabuti de melhor livro de reportagem), A menina quebrada (2013, Prêmio Açorianos de melhor livro do ano), O olho da rua (2017, segunda edição) e meus desacontecimentos (2017, segunda edição). Atualmente, desenvolve seu principal projeto de reportagem na Amazônia e é colunista do portal El País.



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